O Outono instalou-se em força nesta terra, gelada por natureza. Este ano estamos com um Outuno dourado, com a luz do sol refectindo os tons de castanho instalado nas ávores. Até viver aqui, nunca tinha ligado às estações do ano. Talvez porque em Portugal o clima se faz de extremos (não sei donde raio tirámos a ilusão do "clima ameno"), não havendo lugar à passagem tranquila das estações com as suas diferentes colorações e cheiros.
Cá toda a gente comenta o tempo - é uma obssessão. Esteja frio ou calor, toda a gente se queixa. A frase que mais se ouviu na rua este ano foi "Ah! Kakaia Pagoda!" com entoação de enjôo: quer dizer "que raio de clima!". Como não tivemos Verão, o calor inicial do Outuno despertou as árvores de fruto e a cidade anda num espectáculo fora de temporada: toda florida! Ao pé de minha casa os castanheiros não se conseguem decidir se se livram das castanhas que já formaram ou se rebentam em novas flores. Nunca tinha visto árvores com metade fruta/metade flor - deve ser mais um dos fenómenos de Chernobyl...
Por falar em Chernobyl, lembrei-me, de repente, que nunca escrevi sobre isso aqui. Provavelmente porque me tento abstrair do facto de viver a 80 Km de um sarcófago nuclear em muito mau estado. Como toda a gente sabe, Chernobyl foi palco de um dos maiores acidentes nucleares da história, em 1986. 18 anos nada são em termos geológicos, obviamente não é em 18 anos que a radiação passa ou que baixa de nível.
Esta situação tem subjacente uma ironia incrível que, se eu cá não vivesse, até era capaz de que suscitar um sorriso.
Em 1986, o acidente deu-se no final de Abril e foi cautelosamente escondido da população. Ao que parece, se não tivessem sido detectados níveis perigosos de radiação na Alemanha (!) o Governo Soviético nunca teria divulgado o acidente e o número de vítimas mortais poderia ter sido maior. Mas os Kievitas, continuaram na sua vida, sem nada saber, e saíram para as habituais paradas do primeiro de Maio. Só depois disso é que a população foi obrigada a recolher (com avisos para não abrir as janelas - UMA SEMANA DEPOIS, muito obrigado...).
As histórias que se seguem são mirabolantes. Com poucos ou nenhuns recursos, as Autoridades desembaraçaram-se como puderam. Davam duas colheres de vodka por dias às crianças e diziam aos pais que isso as protegia das radiações, e outras tontices do género.
O número de doenças genéticas, neste momento, é elevadíssimo. Sem falar na incidência de leucemia e outros tipos de cancro.
O Soviet ucraniano culpou o Governo cental de Moscovo e, aquando da independência da Ucrânia, 6 anos depois do desastre, Chernobyl foi uma das primeiras razões invocadas para a separação. Os ucranianos nunca perdoarão ao russos o facto de terem sido tratados como cobaias numa experiência perigosa. Ninguém sabe quantas gerações irão ser afectadas pelo desastre.
E, perguntam vocês, onde está a ironia?
Bom, após a independência, o Governo resolveu tomar medidas para minorar as dificuldades causadas por Chernobyl. Uma delas é o facto de todas as regiões consideradas "afectadas" pelo desastre estarem ou isentas de imposto ou terem condições fiscais especiais. Para além de cuidados especiais de saúde, mas como esses não passaram do papel, não vale a pena mencioná-los aqui. Kiev fica a 80 Km da estação nuclear, foi, e continua a ser, gravemente afectada pela radiação. Mas pode uma capital viver nestas condições? nomeadamente, podem os negócios instalados numa capital não pagar impostos? - Claro que não!
Resultado: A cidade é oficialmente considerada como "livre de radiação" e não se fazem sequer medições periódicas, porque não é preciso, não é verdade?
Esta é a grande ironia. Que os mesmo que não perdoam aos russos terem posto em perigo a saúde do seu povo, estejam agora a fazer exactamente o mesmo.
Mas como nós dizemos em português "quem se lixa, é sempre o mexilhão"...
O reactor danificado foi envolto num sacófago. Esta a única maneira por nós conhecida de impedir que mais radiação se liberte com o decorrer do tempo. O problema é que o sarcófago tem desenvolvido várias brechas. As rachas no dito cujo têm feito correr muita tinta. Basicamente o que o Governo quer é que a Comunidade Internacional pague um novo. Claro que é preciso um novo desastre nuclear para que alguém faça alguma coisa. Até lá, vou-me limitando aos legumes congelados, afastando-me dos cogumelos nativos e bebendo o meu cházinho anti-radiação (que cá para mim faz tanto efeito como as colheres de vodka!), e seja o que Deus quiser!