Pronto. Agora parei um bocadinho e finalmente posso desabafar.
Tenho andado que nem consigo tirar cinco minutos para um xixi. Há dias em que chego a casa às nove da noite aflitinha porque andei 12 horas a bulir que nem uma maluca e nem tempo para a retrete!
O novo projecto em que estou agora a trabalhar tira-me do sério. Já não me deveria espantar. Afinal há 10 anos que o meu patrão é o mesmo, e de todos os projectos, iniciativa da nossa pátria, em que tenho trabalhado, não houve um, até hoje que tivesse sido iniciado com o devido planeamento e os devidos recursos.
Isto, meus caros, não se trata apenas de poupança pública. Penso que se trata de puro sadismo, misturado com incompetência crónica.
Talvez a nossa pseudo-elite seja da opinião que "para quem é bacalhau basta" e que os portugueses não merecem mais esforço e mais dedicação. Acaba por ser criado um círculo vicioso, em que a relação Estado-cidadão e vice-versa se deteriora cada vez mais.
Isto para não falar nas coisas em que se gastam recursos e tempo para nada. Há cerca de 5 anos, incubiram-me uma tarefa que me agradou bastante: compilar um livro comemorativo de um certo tema, que me era extremamente querido. Formou-se uma equipa de cerca de 12 pessoas, entre portugas e estranjas e lá arregaçamos as mangas. Para mim significou um esforço adicional, porque não me libertaram das minhas funções habituais. Passei seis meses a trabalhar o dobro no escritório e em casa. Conseguimos, invulgarmente para Portugal, ter a publicação pronta no prazo que nos foi dado. E aquilo até tinha a sua pinta e o seu interesse. Resultado? O Governo decidiu adiar sine-die a publicação que tinha considerado "permente e orbigatória" apenas seis meses antes, e para a qual tinha despendido recursos e dinheiro. Por aqui se entende porque é que os funcionários públicos não fazem nenhum. O ordenado no final é sempre o mesmo. A forma como se é tratado ou como se é promovido depende de tudo menos da competência.
Como já deu para perceber ando com uma valente crise de vocação...
Tirando as crises de vocação e o trabalho excessivo, cá andamos, com algumas experiências doidas à mistura. Na semana passada fui dar uma voltinha pelas "terras de ninguém" que ainda existem por aqui. Bessarábia e transnístria se é que os nomes vos dizem algo. Terras sem fim, rasgadas pelos canais do Danúbio, com casas solitárias semeadas na paisagem.
Sítios onde as mulheres ainda andam cobertas até aos pés e com lenços na cabeça, de acordo com os velhos costumes da ortodoxia russa. Onde o abandono e a pobreza se sentem até aos ossos.
Foi a primeira vez que vi searas ondulando ao vento. Mares amarelos, revoltos, dançando ao som de uma sinfonía inaudível. Rebanhos de gansos, pastando como ovelhas. Os guardadores na hora da sesta enrolados em mantas enquanto os animais deambulam livremente nos campos.
E corvos. Outra vez. Corvos em campos de trigo. Como no quadro de Van Gog. Com direito a espantalhos e tudo.
As aldeias são pintalgadas de casinhas azuis, muito limpinhas e enfeitadas com desenhos geométricos nas paredes. As únicas representações de vida são desenhos de pássaros. Nas casas, nos bancos dos jardins. Tudo geométrico, menos os pássaros. Não sei porquê.
Estas terras juntaram gente variada proveniência. Proscritos de vários impérios que se refugiaram ali por ser de difícil acesso e fazer fronteira com o Mar Negro.
O Mar Negro continua depositário de muitas lendas. Durante muitos séculos foi navegado a medo por várias nacionalidades. Conta-se que os Gregos pensavam que o Mar estava amaldiçoado porque os tubarões que acompanhavam as embarcações voltavam para trás quando ali chegavam. Seguiu-se a conquista do território pelos turcos. Aquela área passou a ser muçulmana, até ao século XVIII quando foi conquistada por Catarina a Grande. Ali se juntaram Búlgaros,Judeus, Gregos, Turcos, Russos, Ucranianos, Moldavos e Tártaros. Hoje dizemos assim pelas suas "origens geográficas", mas a verdade é que uma série de proscritos acabaram por criar raízes numa terra atravessada por água.Mistura estranha de agricultores e pescadores, isolados mas conectados ao mundo pelas grandes linhas de água. Gente estranha, mas muito acolhedora. Adorei esta pequena incursão num mundo que me é totalmente estranho, mas no qual me senti em casa.