Histórias de uma portuga em movimento.
28
Nov 05
publicado por parislasvegas, às 03:15link do post | comentar | ver comentários (1)
Hoje, provavelmente, é o último dia que vou ter acesso à net, muito embora me mantenha a trabalhar, não devo ter mais tempo de escrever seja o que for até me ir embora daqui.
Como já perceberam, estes 3 anos, 9 meses e 28 dias de Ucrânia "are getting to my nerves". Reconheço que tudo teria sido mais pacífico e melhor para o meu equilíbrio enquanto individuo, se eu tivesse saído quando devia, há cerca de três meses. Assim, estes meses a viver num AP soviético, a suportar e executar o trabalho de duas pessoas no meio das porcarias burocráticas e práticas que uma mudança de país exige, retiraram-me a pouca energia e paciência que eu já tinha.
A Ucrânia, obviamente, não tem culpa.
Tenho de agradecer a este país ter-me feito crescer à força. Ao pontapé. Ter-me mostrado a vida privilegiada que todos temos na Europa e como somos uns mariquinhas instalados no nosso conforto ocidental.
Passar dificuldades, sem água, sem electricidade, a não encontrar comida nos supermercados, sem falar a língua e a ser "chutada" pelos locais, não era o meu ideial de crescimento enquanto pessoa, mas serviu. Que remédio.
Nos últimos dois anos, a situação melhorou substancialmente em termos de confortos capitalistas aos quais estamos habituados, mas agravou-se noutros campos, dos quais não me é permitido falar neste espaço.
Por isso cresci. Muito.Completamente à bruta, mas aprendi muitas coisas. Depois de uma certa idade é quase impossível fazer amigos. As desilusões que apanhei aqui relacionadas com comportamentos de pessoas que julgava serem já próximas, ensinaram-me isso. Apesar de tudo saio daqui com, pelo menos, dois amigos - dois irmãos pró resto da vida. E o Xano sabe, porque que ele também os tem.
Aprendi que quando se está numa certa posição é preciso analisar "hidden agendas". Aprendi que as pessoas nunca são simpáticas de graça e querem sempre alguma coisa em troca. Eu interpretei mal e pensei que essa "coisa" que queriam em troca era amizade. Não era. Houve gente que se aproximou de nós pelos nossos contactos e pelo círculo social em que nos movíamos. Usaram-nos como estrada para chegar ao objectivo. Acontece. Vai acontecer mais e ainda bem que já consigo identificar isso.
Vocês devem estar a ler esta merda e a pensar "porra que grande ingénua e grande lamechice". Pois....recomendo vivamente uma experiência destas a quem nunca saiu da "Europa Ocidental" e depois então venham falar comigo.
Aqui aprendi também a minha sexta língua - Russo. Espero não a perder totalmente, não apenas por razões práticas, mas também por razões sentimentais. Lutei com esta língua quase dois anos, até perceber, finalmente o mecanismo mental da gramática desta gente. A partir daí comecei a entendê-los melhor, mais profundamente. Às vezes pode passar-se anos num sítio, falando a língua, entendendo tudo o que se passa à nossa volta, mas sem entender a mentalidade. Acho que consegui fazer isso através da minha melhor compreensão de como funciona o mecanismo cerebral que os faz exprimirem-se nesta língua, tão estranha para um latino.
Passei a odiar Invernos. Eu que gostava imenso de frio. Odeio neve, odeio os dias de temperaturas alucinadamente negativas. Odeio andar na rua e ter o corpo dormente, deixar de sentir os membros, pensar que tenho que entrar em casa senão morro. Mesmo com o melhor dos casacos, mesmo com toda a protecção polar que se possa vestir. Odeio os dias só com 5 horas de luz. Deprimo e mirro com a combinação do frio mais escuro. Detestei essa parte de todos os anos aqui. Claro que não sou só eu. Ainda hoje ouvi um grupo de estrangeiros a falar no Inverno de 2002 como se de uma batalha se tratasse: "Estavas cá???Horrível!!!!27 graus negativos!!Ia morrendo!!!"
O meu relacionamento com o povo também não começou da melhor maneira.
O facto de me chamarem "preta" na rua e de me seguirem nas lojas para se assegurarem que eu não iria roubar nada, ofendeu-me horrores. O facto de me perguntarem constantemente se eu era cigana ou simplesmente mulata e me tratarem como uma bostita não foi muito agradável. O racismo que sofri aqui,nos primeiros dois anos, não tem nada que ver com o racismo europeu que é encoberto. Este é directo,na tua cara, com a maior das latas e a cagar para o politicamente correcto, que ainda cá não chegou.
Isso parou com a revolução laranja e a invasão de estrangeiros que se seguiu. O povão aprendeu a distinguir-me enquanto latina. Às vezes até tentam falar-me em italiano ou em espanhol. UAU!O que isto mudou!!!! Também reconheço que dois anos sem praia me tornaram menos preta, mas pronto....
Isto para dizer que, nestes últimos dois anos, tenho feito amigos cá, tenho participado na vida de famílias. Tenho visto tradições, afectos e vivências que me mostraram que somos todos iguais. Principalmente à volta de uma garrafa de Vodka, somos todos irmãos. Demorei a conseguir "entrar", mas uma vez lá dentro, uma vez considerada da família, deixaram-me de estigmatizar enquanto "estranja".Não é fácil ganhar a confiança deste povo e eu percebo muito bem porquê...
Enfim, foi um destino que me deu luta. Profissionalmente e pessoalmente. Não posso dizer que tenha desgostado. Não posso dizer que me tenha apaixonado. Foi um "casamento" atribulado, e muito embora continue a nutrir sentimentos fortes por este país, devo confessar que o divórcio faz de mim uma mulher bastante mais feliz...

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