água por todos os poros, devido ao calor filho-da-puta que se tem vindo a sentir nesta cidade, e fervendo injúrias diversas a quem se acha melhor do que os outros, a quem tem reis na barriga e a quem o sucesso só serve para lhes toldar a visão com manias de grandeza, atravesso a Avenida lançando entre dentes palavrões lusos e cabeludos.
Neste estado de alma, que apenas serve para me consumir sem motivo, a minha atenção foi desviada para uma cabine telefónica donde se ouviam sonoros Inch'a Allah " entrecortados de soluços. Uma mulher de meia-idade falava com os parentes e chorava. Acordo do meu estupor (e, diga-se, estupidez) para reparar que à minha volta só se falava árabe, ou aquele francês delicioso com sotaque do Líbano. Agitados pela situação que se vive no seu país, as centenas de libaneses que habitam o bairro, habitualmente discretos, reúnem-se no calor das esplanadas a discutir e trocar informações sobre a família que ficou ou que ainda não foi evacuada.
O francês que me vende os jornais discutia animadamente com um libanês,ambos apelidando os israelitas de "filhos de um cão". O bairro, conservador e reaccionário, tem criado uma onda de solidariedade pouco habitual em torno dos libaneses e dos muçulmanos que o habitam. Nem os franceses de direita concordam com esta guerra. Pena é que esta harmonia não exista em tempos de paz.
Reflectia eu nestas coisas, já frente a uma salada grega e meio-litro de água gelada, quando dois enormes negros de meia-idade resolveram encetar conversa. Entediados frente aos copos de Rosé, acharam que deveria ser libanesa também e começaram a lamentar a situação no médio Oriente. Quando esclareci a minha verdadeira nacionalidade foi a gargalhada total: ambos eram brasileiros, radicados em França há largas décadas. Um deles, casado com uma Goesa, conhecia bem Portugal e, principalmente, a nossa gastronomia. As desgraças da humanidade deram lugar a uma conversa light , mais adequada aos 36º e à ingestão de Rosé. Acabei o almoço com o gosto amargo das ironias e aquela certeza incómoda de que os humanos preferem olhar para os lados, cada vez que morte os olha de frente.